19 de dezembro de 1990

Eu devia estar por casa naquela noite de quarta-feira. Era dezembro e possivelmente o calor do verão cada vez mais eminente já se achegava por entre as frestas da porta do meu quarto. Se a lua estava cheia ou minguante eu não lembro. Nem sei se chovia.

Eu tinha doze anos e naquele dia eu já devia estar de férias e, feliz por isso, devia ter passado o dia inteiro a vagabundear pelos muros da vizinhança. Naquele horário eu já devia ter feito todas as coisas que minha infância de criança ausente e calada me permitiam e, cansado de um dia contemplativo e demorado, preparava-me para o descanso.

Às vinte e três horas e trinta minutos eu também devia estar sozinho. Naquele horário eu já devia ter chegado do futebol no campinho do bairro, devia ter tomado meu copo de leite gelado com dois pães esfarelados na margarina, devia ter relutado em tomar o banho, apesar do calor e do suor que devia escorrer pela nuca molhando a gola da camiseta colorida, devia ter pensado em ver televisão, em tocar o violão que eu recém havia ganhado, devia ter pensado na vida como pensa um menino de doze anos, pensado em olhar a noite cair por cima dos morros da cidade, em distrair-me nas janelas dos prédios vizinhos, pensado em ler minhas revistas de histórias em quadrinhos, meus álbuns de infindáveis e inúteis coleções que foram aos poucos consumidas pelo tempo ou pelas mãos ágeis e utilitaristas de minha mãe.

No outro dia as notícias devem ter saído em demasia. No jornal, no noticiário, nos comentários da rua. Eu devo ter prestado atenção ao fato. Ou talvez eu nem tenha dado bola. No outro dia só restaram as tuas palavras impressas na folha fria de um jornal na capital do país.

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Categorizado como Crônica

Por felipedamo

Felipe Damo é jornalista

23 comentários

  1. A propósito do friozinho que anda fazendo na terrinha dos Bornhousens, lá naquele não tão longincuo 19 de novembro de 1990, acabava a guerra fria e, enquanto isso, o pequeno futuro socialista ia dormir o seu soninho sossegado.

  2. muito bom o texto, como sempre.
    sem falar naquela sensação de “onde eu estava mesmo nesse dia?”.

    várias vezes já pensei sobre isso e procurei a mim mesmo, persegui-refiz meu próprio itinerário, voltando no tempo para perceber onde estava e o que fazia em determinada data. pra mim é um exercício muito interessante. e a crônica postada me leva justamente a isso: vasculhar-rever, mapear os caminhos da vida.

    exatamente no dia 19 eu não lembro o que aconteceu. mas dois dias depois foi minha formatura de oitava série. e uma das coisas mais legais foi que naquele 21 de dezembro de 1990 ganhei de minha irmã mais velha o meu primeiro disco dos Beatles. sem dúvida o melhor presente de formatura… rs.

    Felipe, parabéns pela sensibilidade de sempre.

  3. …exatamente uma semana antes, foi meu aniversário de 9 anos. Então no dia 19 de dezembro de 1990 eu possuía brinquedos, livros e lápis de cor novos. E minha primeira bicicleta, pq tive boas notas na 2ª série. E fiz o plano que 11 entre 10 crianças na minha rua fizeram: descer o morro da cruz de bicicleta. Coisa que fiz em janeiro ou fevereiro do ano seguinte, onde ralei até a cabeça. Eu também estava de férias, o que era ótimo, na escola meu apelido era “czarina” coisa que eu odiava e me fazia dar mais ordens e tapas nos coleguinhas, que achavam que meu nome era russo. Lia obssessivamente e ouvia os discos dos meus pais escondida. Pink Floyd. Não podia dar certo.rs

  4. sim, eu escrevi as gargalhadas!!

    sabe aquele Drama, que eu fiz da mulher jogando as duas tetas no lixo? aquele sim é que me rendeu gargalhadas descontroladas, porque quando eu percebi que estava rindo do câncer alheio, aí é que ri mais ainda!
    e eu estou rindo muito agora, ao lembrar de tudo.

    abraçon
    (bloomsday foi otemo.. ficou com jeito de sessão espírita, você abrindo a mesa; teve ate frio digno de irlanda)

  5. Eu tinha seis, dez dias depois sete, era filha única, uma criança introspectiva, morava com minha avó e costumava esperar as visitas da minha mãe sentada no portão de casa…

    Algumas poucas lembranças dessa época…

    se fosse inverno… eu diria que o Seba estava deixaico do seu aconchegante cobertor…

  6. bom, tinha 9 anos… concerteza estava na paria de provetá, em Ilha Grande – Angra dos Reis/RJ, pentelhando meus irmãos mais velhos… ou amarrando caranguejo em cordas para assustar as chatas das minhas primas ou até mesmo caçando cigarras… adorava isso… ah! ou estaria lendo algum livro da coleção vaga-lume… hhahahhhaah… bom quando eu lembrar mais detalhes eu comento… é isso…

    by

    ah! o Seba, deveria estar no inicio da fabricção de seu manto sagrado… dizem que se começa tear ainda criança né?!

  7. A propósito dessa boa crônica nostalgica de Felipe, eu me lembrei de uma coisa que começa assim:

    “Dezembro de 2001

    Eu me tornei o que sou hoje aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975. Lembro do momento exato em que isso aconteceu, quando estava agachado por detrás de uma parede de barro parcialmente desmoronada, espiando o beco que ficava perto do riacho congelado. Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar. Olhando para trás, agora, percebo que passei os últimos vinte e seis anos da minha vida espiando aquele beco deserto.

    Um dia, no verão passado, meu amigo Rahim Khan me ligou do Paquistão. Pediu que eu fosse vê-lo. Parado ali na cozinha, com o fone no ouvido, sabia muito bem que não era só Rahim Khan que estava do outro lado daquela linha. Era o meu passado de pecados não expiados. Depois que desliguei, fui passear pelo lago Spreckels, na orla norte do parque da Golden Gate. O sol do início da tarde cintilava na água onde navegavam dezenas de barquinhos em miniatura, impulsionados por um ventinho
    ligeiro. Olhei então para cima e vi um par de pipas vermelhas planando no ar, com rabiolas compridas e azuis. Dançavam lá no alto, bem acima das árvores da ponta oeste do parque, por sobre os moinhos, voando lado a lado como um par de olhos fitando San Francisco, a cidade que eu agora chamava de lar. E, de repente, a voz de Hassan sussurrou nos meus ouvidos: “Por você, faria isso mil vezes!” Hassan, o menino de lábio leporino que corria atrás das pipas como ninguém.” (…)

    Khaled Hosseini

  8. a lua crescente estava 4,5% iluminada neste dia, mas, já desaparecera do céu (às 20hh58) no horário do texto (ela estava se pondo e nascendo próximo ao sol). Júpiter brilhava forte, com -2,5 de magnitude, assim como Marte (-1,7) que tb estava no belo céu de quase-verão coladinha nas Plêiades na constelação de Touro, junto com Orion e suas Três Marias, (todas – infelizmente – escondidas em nosso céu quase-invernal). bem, lendo os ótimos comentários, depois vejo onde estava neste dia. ah, o Seba, esse andarilho das estrelas, onde estaria, onde estaria???

  9. …sim, me lembro que todas as minhas férias na praia de Provetá, depois de ficar todo enrugada por estar no mar a manhã toda, vinha o cansaço inevitável… tinha mania de deitar nas redes emboladas que os pescadores, vizinhos de minha Vó, amontoavam embaixo de uma árvore enfrente a sua casa, já que lá tinha, ou melhor tem uma árvore, que agora não sei de qual tipo, com a copa enorme, ficava lá deitada um fim de tarde todo, até dormir ouvindo as historias de pescador… confesso que aprendi a contar pequenas mentiras, se pode-se dizer que mentiras são pequenas… aumentar, não melhor dizer, tornar atraente algumas historias sem graça… lá também aprendi, com aqueles pescadores, alguns até parentes, como é bom ouvir, independente de quem fala, de quem conta… ouvindo… ouvindo… escutei muitas coisas, soube de muitas historias de famílias, era quase uma novela… engraçada, dramática,assustadora, enfim todos os enredos possíveis… nossa, foi lá que descobri que minha mãe casou grávida… hahhaahahaha… ela escondia isso dos filhos… como se fosse possível manter o segredo… tenho saudades daqueles verões… tenho saudades das cigarras capturadas e soltas na noite… sinto saudades da praia sem energia elétrica, só a lua iluminando… até os nove, achava que se pulasse bem alto ainda podia pegar uma estrela… saudades de pensar em fazer coisas impossíveis…

    by

  10. olha só…. Hélinho voltou com as intimidades do K… hummm… e por que chorar… não ha necessidade não fio… relaxa… eu é que tenho que chorar se você continuar com essa historia de K… eu não mereço isso não…

  11. Então tá, C, choro a cada informação que me passam acerca do passado de cada um, por que sei que nunca mais nenhum de vocês irão vivê-los outra vez; uns por que não querem mais viver tais situações, preferem esquecê-las para todo sempre; outros, gostariam se poder voltar no tempo e vivenciá-las quantas vezes fossem necessárias. Entendeu, meu bem? Intimidades é isso…

  12. ai meu bem… adorei… agora to contigo Hélinho e não abro… agora eu é que me emocionei.. e olha que isso é dificil… ai ai ai…

  13. Felipe, meu caro, gostaria de tomar a liberdade e colocar aqui um coisa em homenagem a todas as mulheres que pululam pelo seu blog. Aqui vai:

    “Eu quero
    Me esconder debaixo
    Dessa sua saia
    Prá fugir do mundo
    Pretendo
    Também me embrenhar
    No emaranhado
    Desses seus cabelos
    Preciso transfundir
    Seu sangue
    Pro meu coração
    Que é tão vagabundo…

    Me deixa
    Te trazer num dengo
    Prá num cafuné
    Fazer os meus apelos…

    Eu quero
    Ser exorcizado
    Pela água benta
    Desse olhar infindo
    Que bom
    É ser fotografado
    Mas pelas retinas
    Desses olhos lindos
    Me deixe hipnotizado
    Prá acabar de vez
    Com essa disritmia…

    Vem logo
    Vem curar seu nego
    Que chegou de porre
    Lá da boemia…

    Eu quero
    Ser exorcizado
    Pela água benta
    Desse olhar infindo
    Que bom
    É ser fotografado
    Mas pelas retinas
    Desses olhos lindos
    Me deixe hipnotizado
    Prá acabar de vez
    Com essa disritmia…

    Vem logo
    Vem curar seu nego
    Que chegou de porre
    Lá da boemia…”

  14. É só para dizer, que no dia a seguir ao dia 19 de Dezembro de 1990, aproximadamente às 6.00 AM estava um lindo bébé a nascer, EU ! :p

    Obrigado por me descreveres o que acontecia horas antes com alguém que não a minha familia, e noutra parte do mundo. É muito interessante.

    🙂

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